Desde que as sociedades humanas
passaram a se organizar em Estados, surgiu a necessidade de grupos de indivíduos
que pudessem tanto agredir outras sociedades de modo a lhes extrair recursos
uteis aos quais não havia acesso, quanto a proteger sua sociedade original de
igual agressão. Esses indivíduos eram os militares, que nos primórdios eram
apenas um grupo qualquer de camponeses que pegavam em armas para o ataque ou
para a defesa, os quais sempre gozavam de grande prestigio em suas sociedades,
sendo seus líderes normalmente oriundos da elite.
Com o passar do tempo (mais exatamente
na Idade Moderna), surgiu a necessidade dos militares se profissionalizarem,
pois os camponeses recrutados por livre vontade ou não estavam ficando
defasados e indisciplinados, não correspondendo às expectativas. Um dos
primeiros exércitos “profissionais” desde período foram os Janízaros do
Império Otomano, cuja existência tinha um fundo tanto militar quanto
sócio-político.
Criado no Séc XVIII pelo Sultão
Murad I, o corpo de Janízaros (Yeni
Çeri, em turco) tinha como “recrutamento” o imposto cobrado pelas famílias
cristãs que habitavam o Império Otomano (que ocupava desde os Balcãs até os
áridos desertos do Egito e do Iraque), imposto esse chamado de devsirme. Os cristãos que tinham filhos
tinham a obrigação de informar os dirigentes locais a quantidade de filhos
homens de sua família. Em média, 1 em cada 5 meninos (em geral entre 6 e 7
anos) era levado pelas autoridades para ser “islamizado”, sendo as modernas
Bósnia; Albânia e Bulgária onde o “imposto” era mais cobrado. Eram treinados e
educados a serem totalmente leais ao Sultão e ao Corpo de Janízaros, que de
agora em diante seriam sua nova família. Embora a maioria dos Janízaros tenham
sido soldados a vida toda, alguns “tributos”, que possuíam uma inteligência
acima da média, eram selecionados para serem treinados em Constantinopla,
podendo atingir altos cargos, sendo que alguns até alcançaram o posto de
Grão-vizir, uma espécie de Secretário-Geral cujo poder só estava abaixo do
próprio Sultão.
Foram os Janízaros que iniciaram o
ataque que viria a ser a tomada de Constantinopla em 1453, bem como
foram a elite do exército de Suleiman, o Magnífico (o mais famoso dos
sultões otomanos, que conquistou a Hungria e chegou perto de tomar Viena). Em
sua idade de ouro, os Janízaros seguiam um rígido código de conduta, que
embarcava: absoluta obediência a seus oficiais; abstinência de álcool; nada de
barba; proibição de casamento; não ter qualquer outra profissão ou atividade
que não fosse militar e aceitar a antiguidade como critério para promoção,
dentre outras coisas. Em troca de todas essas exigências, os Janízaros possuíam
uma ótima remuneração e alimentação, bem como que a partir de 1451 foi criado o
benefício do bônus de acessão, concedido sempre que um novo Sultão recebia a
espada cerimonial (versão islâmica da coroação). Se os Sultões pudessem
imaginar que esse bônus marcaria uma mudança radical nos soldados...
Os até então Supersoldados otomanos
começaram a ter seu “amolecimento” em 1566, com a progressiva flexibilização de
seu código de conduta. Neste ano, foi permitido pela primeira fez o casamento
de um Janízaro, e, como consequência direta, também foi permitido que os filhos
dos Janízaros pudessem pertencer ao corpo militar, rompendo com a tradição de
que apenas as crianças cristãs seriam aceitas para mostrar a submissão delas ao
Islã, bem como levando a não observância da disciplina rigorosa, já que, como
muçulmanos, só deviam obediência absoluta a Alá. A última cobrança do devsirme foi feita em 1676, sendo que
nessa época já haviam relatos de pais muçulmanos que entregavam seus filhos a
famílias cristãs para que eles pudessem ter a chance de pertencer a tão
privilegiado grupo.
Estes fatos somados a novas liberdades
(os Janízaros passaram a adquirir casas nas cidades em que estavam guarnecendo
em vez de ficarem nos quarteis; praticavam o comercio em tempos de paz),
levaram o corpo militar a se tornar extremamente ganancioso. Nessa situação, o
bônus de acessão deixou de ser visto como uma recompensa e passou a ser uma
forma de extorsão. Em 1623, quando o Sultão Murad IV assumiu o trono,
seu Grão-Vizir informou aos generais Janízaros que os cofres do Império estavam
vazios, não podendo pagar o bônus prometido. Embora os generais tenham aceitado
renunciar ao bônus naquela ocasião, seus subalternos não tiveram tão nobreza,
se amotinando junto aos soldados mais baixos de modo a exigir seus Direitos. A
solução foi derreter Ouro e Prata do Topkapi
Sarayi (o palácio do Sultão) de modo a cunhar as moedas necessárias para
pagar todo o corpo de Janízaros.
Neste momento, os Janízaros passaram a
serem vistos como estorvos gananciosos e inconfiáveis, e o bom senso exigia sua
dissolução. O problema era que os Janízaros estavam muito bem espalhados pelo
Império (cidades como Constantinopla; Cairo e Damasco tinham grandes quarteis e
guarnições de Janízaros), sendo impossível eliminar todos eles ao mesmo tempo
(um total de 90 mil homens, segundo as estimativas) para além desses problemas
de “logísticas”, existia as ameaças sempre presentes da Áustria e da Rússia no
Ocidente, bem como da Pérsia no Oriente. Se qualquer um desses três atacasse o
Império Otomano, os Sultões necessitariam dos Janízaros (o maior e mais
organizado corpo militar do Império) para protegê-lo. Por essas dificuldades
externas e internas, os diversos Sultões foram obrigados a tolerar os abusos
dos Janízaros, que ainda iriam durar muitos séculos. Um novo desafio aos
privilégios dos Janízaros apenas viria no fim do Séc XVIII, com o Sultão
Selim III.
Em 1791, o Sultão Selim III, bastante
ciente do total atraso do Império Otomano na área econômica; tecnológica e nos
efetivos militares em comparação as potencias europeias (que até rendeu o
carinhoso apelido de “Homem doente da Europa” dado pelo Czar Nicolau I da
Rússia), decidiu criar um grande programa de reformas, de modo a superar esse
total atraso de seu império. Esse programa, conhecido como “nova ordem” (Nizam-i Cedid em turco) foi auxiliado em
grande medida pela recém-nascida República da França que, cercada por
monarquias hostis a sua existência no continente europeu, foram buscar aliados
nos distantes domínios otomanos, acreditando que uma eventual renovação Otomana
nos Balcãs e no Mar Negro pudesse distrair a Áustria e a Rússia (inimigas da
França revolucionária), enviando técnicos e militares as terras do Sultão para
auxiliarem na implementação das reformas.
Entre as várias reformas previstas,
estava a reforma militar, onde seria criado um novo efetivo militar que levava
o mesmo nome da reforma (Nizam-i Cedid)
que passariam a ser treinados segundo os manuais europeus, e também usariam
uniformes comuns nos países da Europa. Essa reforma em particular assustou os
Janízaros, que viam uma grande ameaça em relação aos seus status e privilégios.
Lentamente, eles começaram a sabotar a reforma que estava criando seus
“substitutos”.
Em 1805, Selim buscou realizar um
recrutamento geral para seu exército de Nizam-i
Cedid nas províncias do Império, medida que também buscava privar os
inconfiáveis Janízaros de novos recrutas, assim como planejou transferir
Janízaros para o novo corpo militar. A “velha ordem” não era estúpida, e logo
trataram tanto de cortar os suprimentos dos Nizam-i
Cedid quanto construir barreiras nas províncias para impedir o
recrutamento. Com medo de uma eventual rebelião geral de Janízaros, Selim
recuou, dando uma clara mostra de fraqueza que não foi desaproveitada pelos
Janízaros alguns anos depois.
Em
1807, Selim enviou a maior parte do exército otomano para lutar contra os
russos no Danúbio, deixando Constantinopla sem nenhuma tropa verdadeiramente
leal. Simultaneamente, um grupo de Janízaros se amotinaram na fortaleza de
Rumeli Kavak, na entrada do Bósforo (região que engloba os estreitos do Mar
Negro) ao se recusarem a usar o “uniforme infiel”, ao terem sido ordenados por
oficiais Nizam-i Cedid, chegando ao
ponto de matar um desses oficiais e ameaçar marchar sobre a capital, ao qual
estavam a apenas 30 quilômetros de distância.
Desesperado ao não ter tropas leais na
capital, Selim cometeu o erro de não enviar tropas Nizam-i Cedid de outros lugares para combatê-los, mas sim evitar
uma guerra civil e ouvir as queixas dos Janízaros. Essa atitude vacilante deu
tempo para que um grupo de 600 Janízaros fossem até a região da Gálata e
provocassem distúrbios que rapidamente contagiaram Constantinopla. Milhares de
Janízaros de outras regiões se juntaram a eles, bem como estudantes religiosos
que acreditavam que as reformas levariam o Império a “perder sua alma” já que
eram organizadas por “franceses infiéis”. Ambos, Janízaros e estudantes, foram
também insuflados pela Ulema (uma
espécie de guardiã dos costumes e das tradições do Império Otomano) que
tampouco via com bons olhos a ocidentalização.
Pressionado por esta rebelião em larga
escala, Selim tomou a pior decisão possível: anunciou que as unidades militares
Nizam-i Cedid seriam desfeitas, bem
como destituiu e executou ministros ocidentalizados que estavam realizando as
reformas. A muralha que o Sultão buscou construir para se proteger revelou-se
uma cortina de fumaça. Os revoltosos não confiavam em Selim, acreditando que
bastava que suas tropas leais voltassem do Danúbio as reformas seriam
retomadas, chegando ao ponto dos Janízaros aprisionarem o secretário pessoal do
Sultão que planejava levar uma mensagem até essas tropas e o executaram,
atirando sua cabeça na sala do trono diante de Selim, cuja reação dispensa
comentários.
“Como pode um sultão cujos decretos e
comportamento transgridem os sagrados ensinamentos do Santo Corão continuar
reinando? ” Se perguntavam os revoltosos. Não poderia ser diferente: o Sultão
Selim III foi deposto em 29 de maio de 1807 por meio de um Fetva (decreto religioso) e em seu lugar foi nomeado Mustafa IV
como novo Sultão. Os Janízaros ficaram satisfeitos pela remoção daquele Sultão
que tanto ameaçava seus privilégios, mais ainda com o pagamento do bônus de
acessão pelo novo Sultão.
Lamentavelmente para os Janízaros, eles
não riram por último. Após algumas conspirações palacianas, o Sultão Mustafa IV
foi substituído por Muhamud II. Esse novo Sultão compartilhava a visão
de seu primo Selim de que o Império estava profundamente decadente e atrasado,
e seriam necessárias muitas reformas para que voltasse a ter algum poder, mas
ao contrário do seu primo foi bem mais inteligente. Em primeiro lugar, cortejou
a Ulema, buscando evitar qualquer
acusação de que não se orientava pelos sagrados desígnios do Alcorão, com ações
tais como construir novas mesquitas e resgatar organizações islâmicas
decadentes. Essas ações apaziguaram a Ulema,
que agora mostrava total simpatia pelo Sultão, evitando assim que estimulassem
rebeliões religiosas contra ele e suas futuras reformas.
Com a Ulema pacificada, o maior obstáculo a modernização passou a ser os
Janízaros, que nesta época, eram pouco mais do que criminosos com privilégios.
As brigadas de incêndio das cidades otomanas ficavam sobre controle dos
Janízaros, sendo que existiam relatos de que muitos incêndios eram feitos pelos
próprios Janízaros para serem pagos para apagá-los. Um claro exemplo da
inutilidade dos Janízaros como força armada foi que, em 1811, um corpo militar
deles se organizou para o que viria a ser sua última campanha contra inimigos
estrangeiros. Dos 13 mil Janízaros que deixaram Constantinopla, 11.400
desertaram com apenas 50 quilômetros de marcha. Essa mostrar de indisciplina e
decadência foi o início da queda deste outrora respeitado grupo militar.
No inverno de 1825, Mahmud criou e
fortaleceu corpos de artilharia em Constantinopla e nas fortalezas ao longo do
Bósforo. Quando acreditou que estava suficientemente protegido, exigiu, em maio
de 1826, que os Janízaros seguissem o manual europeu de treinamento,
utilizassem uniformes ocidentais e adotassem os fuzis (em pleno Séc XIX, ainda
existia grupos de Janízaros que usavam nada além de espadas). A reação não
demorou: em uma noite: jovens oficiais Janízaros se reuniram para iniciar uma
revolta, sendo seguidos por vários soldados que, para mostrar sinais de
revolta, viraram seus caldeirões de sopa.
Ao contrário da revolta de 1807, essa
novo revolta foi um fracasso por vários motivos: o Sultão Mahmud, que aprendeu
dos erros de seu antecessor Selim, não estava no palácio na noite da revolta, e
sim em outra localidade; havia muitos canhões espalhados pelo Bósforo que
bloqueavam aos Janízaros a entrada até o Topkapi
Sarayi (vulgo palácio) e a grande massa não apoiava os Janízaros, já que o
Sultão mantinha boas relação com a Ulema
e está não instigou o povo. Apenas pobres artesões os apoiavam, com medo de
perder seu sustento com produtos artesanais se a ocidentalização continuasse.
Na tarde do dia seguinte, os Janízaros já tinham voltado para seus quarteis,
acovardados.
E então começou o expurgo. Os canhões
do Sultão espalhados pelo Bósforo bombardearam os quarteis Janízaros por meia
hora, matando centenas deles, os que fugiram foram presos e rapidamente
executados. “O simples nome Janízaro, envolvido ou não em uma ação ostensiva,
funcionava como sentença de morte”, relatou o embaixador britânico Stratford.
Segundo as estimativas, um total de 6.000 Janízaros pereceram na revolta e no expurgo que o sucedeu. Vendo o massacre no Bósforo, os Janízaros espalhados pelas demais províncias otomanas escolheram se submeter ao Sultão Mahmud II, e no dia 13 de junho de 1826, o corpo de Janízaros foi formalmente abolido, marcando uma vitória total para o Sultão, uma vez que aqueles criminosos disfarçados de soldados não mais voltariam a ameaçar seja ele ou qualquer outro Sultão que o sucedesse.
Por DEMETRIUS SILVA MATOS
FONTE:
PALMER, Alan. Declínio e queda do Império Otomano. São Paulo: Globo, 2013.
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