O
POST IV da série COVID 19 aborda o aspecto intramuros do isolamento social, oferecendo um olhar reflexivo para a ideia de “glamour” que circula em algumas redes sociais em contraposição a
realidade da quarentena.
As diversas postagens, lives e
artigos, mostram claramente que a VIDA de TODOS foi impactada por
conta do distanciamento e isolamento social, adotados em vários Estados da Federação, mudando
rotinas e gerando aprendizados adaptativos diários, além da preocupação com a
saúde mental e emocional das pessoas que de uma hora para outra, alteraram
rotinas, trabalho, e tiveram que se adaptar a esse período, e talvez por isso, em alguns municípios, equipes de psicologia de universidades, canais no youtube, lives diversas tentam abordar o tema saúde mental e emocional em tempos de
COVID 19.
O
Defensor Público no Estado do Maranhão, Victor
Hugo, faz o convite para uma reflexão sobre o tema:
"Corona Lives. 18º dia de quarentena. Por
circunstâncias que não fazem sentido mencionar, encontro-me sozinho desde que
tudo começou. Acordei cedo, fiz o café, encarreguei-me da faxina, da roupa
suja, da louça que transbordava da pia e, após o almoço, deitei-me no sofá.
Passei tempo suficiente navegando em redes sociais para perceber que mais da
metade de meus amigos havia comparecido a um show da dupla
sertaneja Jorge e Mateus na noite anterior. De acordo com os veículos de
comunicação, a live realizada pelos cantores durou aproximadamente 04
horas e teve mais de 03 milhões de aparelhos eletrônicos ligados de forma
simultânea ao longo da transmissão, ultrapassando 36 milhões de visualizações
na tarde do dia seguinte. Recordes absolutos.
O episódio acima retrata bem um fenômeno que tem se
alastrado pela internet nos últimos dias: a glamourização da quarentena
por parte da classe média. Seguindo o que preconiza a OMS e na linha do que vem
sendo adotado por outros países, algumas autoridades públicas brasileiras têm
estabelecido medidas mais drásticas para instituir um isolamento social e
conter a propagação do COVID-19. Apesar de vozes contrárias e diversos
problemas operacionais, as determinações vêm sendo adotadas por boa parte da
população, surtindo alguns dos efeitos desejados. Ocorre que, estabelecido esse
confinamento residencial, algumas complicações passam a surgir. Uma delas é a
manutenção da saúde mental.
Nesse sentido, fórmulas capazes de atingir o sucesso
quarentenal vêm sendo propagadas. Não podem faltar a yoga pela manhã, logo
depois da meditação, treino de crossfit online, séries e filmes do top 10 dos
serviços de streaming, livros sobre superação e de como você pode ser foda, 101
dicas de como tirar de você 200% de performance num home office prazeroso,
entre outras. Se Isaac Newton formulou a Teoria da Gravidade durante sua
reclusão por conta da Grande Praga que assolou a Inglaterra no século XVII, por
que nós também não o faríamos? A vida perfeita das redes sociais atinge um patamar
ainda mais opressor. Como alertou Byung-Chul Han, em seu Sociedade do
Cansaço, já experimentávamos um imperativo de desempenho e um excesso de
positividade que descambava em diversos tipos de violência neuronal, da
síndrome de hiperatividade à de Burnout, o que tem sido potencializado em
tempos de pandemia.
Sendo assim, multiplicam-se os vídeos, fotos e transmissões
ao vivo de toda sorte, capitaneados por uma classe média privilegiada que pode
se dar ao luxo de se proteger de um vírus mortal numa trincheira regada a
vinho, delivery e conexões de internet ultrarrápidas, trazendo a sensação de
que estamos dentro de uma edição do Big Brother Brasil e de que nossa
programação alterna entre prova do líder, paredão e festas temáticas. Quem será
o amigo ou artista da vez? Em momentos de ruptura, o ser humano é sempre
chamado a se reinventar. O universo musical e de marketing têm mostrado que um
novo nicho está se formando e estão aproveitando a oportunidade para se
promover.
Com essa crítica, não proponho que devamos nos entregar a um
movimento autodestrutivo de isolamento dentro do isolamento, nem que
descuidemos de nossa saúde física e mental. Muito menos sugerir que movimentos
artísticos que mobilizem verbas importantes em forma de doações sejam
rechaçados. Todavia, esquecer que lá fora existem milhões de pessoas que já
estão se alimentando apenas de desesperança e pavor, completamente desamparadas
pelo Estado e pelos que poderiam contribuir para que essa crise
sanitário-econômica pudesse ter um impacto menos destrutivo, é quase um
escárnio. Vale destacar que os números oficiais das secretarias de saúde dos
estados e municípios indicam que a própria classe média foi a grande
transmissora do vírus, uma vez que a incidência deste se dá de forma mais
contundente nos bairros nobres das capitais brasileiras, onde residem
indivíduos com poder aquisitivo suficiente para lhes permitir viagens
internacionais.
Dessa forma, acredito que temos uma responsabilidade ainda
maior na condução dessa crise. O fetiche pela desgraça, tão característico dos
nossos tempos, não pode ter como contraparte a glamourização do confinamento.
Pensemos nos pais e mães de crianças que não possuem um minuto de
individualismo dentro de sua própria clausura e ainda precisam dar conta dos
trabalhos domésticos e do home office; imaginemos aqueles que precisam
trabalhar sob sol, chuva e vírus para que tenhamos nossos supermercados
abastecidos, nossas comidas aquecidas, nossa bebida gelada, e nossa reclamação
de que as costas doem após o grande esforço que é limpar um banheiro ou passar
um pano com água sanitária nas compras que foram trazidas até a porta da nossa
casa. Enfim, só desejo que o “fique em casa” se torne uma expressão de
solidariedade e união, não de exclusão." (texto publicado no site justificando no dia 09/04/20)
Victor
Hugo Siqueira é mestre em Direito e atua como
defensor público na cidade de São Luís-MA.